por Prabhat Patnaik [*]
O pacote de resgate de US$1,9 milhão de milhões (trillion) do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é uma das mais ambiciosas medidas para reanimar o seu país e, assim, a economia mundial. Vindo nos calcanhares dos US$2 milhões de milhões de Trump, no ano passado, e de outro pacote de US$900 mil milhões anunciado em Dezembro de 2020, ele busca não apenas dar alívio à pandemia como também iniciar um novo boom nos EUA que, espera-se, terá efeitos favoráveis para o mundo como um todo, apesar das medidas proteccionistas contra importações introduzidas nos Estados Unidos no governo de Donald Trump. Ele também aumentará o rácio défice orçamental/PIB dos EUA até um nível sem precedentes na sua história do pós-guerra. O longo boom pós-segunda guerra mundial foi sustentado no mundo capitalista pela intervenção activa do Estado através de meios orçamentais. A continuação desse boom, no entanto, tornou-se impossível à medida que as finanças se tornaram globalmente móveis: sua oposição habitual a défices orçamentais e a impostos sobre os ricos para financiar despesas de governos nacionais tornou-se assim decisiva, uma vez que as finanças globalizadas agora enfrentam um Estado-nação que tem de prostar aos seus caprichos por medo de que não fazer isso precipitaria uma fuga de capitais. Por outras palavras, se qualquer Estado persistisse numa intervenção orçamental activa, as finanças então simplesmente deixariam esse país e iriam para outro lugar. Os EUA, entretanto, estavam em grande medida livres dessa pressão, uma vez que a sua divisa era considerada “tão boa quanto o ouro” e, portanto, um meio seguro para manter riqueza, o que excluía qualquer fuga de capital em grande escala dos EUA. Mas, no caso dos EUA, o aumento dos gastos do Estado causou uma “fuga” de procura no exterior, de modo que se endividou externamente ao mesmo tempo em que criava empregos no exterior ao invés de criá-los em casa. E este facto actuou como um dissuasor da intervenção orçamental do Estado. Trump introduziu o proteccionismo por esse motivo, de modo a que o estímulo orçamental da economia dos EUA gerasse empregos em internos e não no exterior. Contudo, apesar de tal protecção, o recente estímulo orçamental da economia ampliou significativamente o défice comercial dos Estados Unidos, o que significa que ainda houve uma “fuga” significativa de procura no exterior. Convém notar, no entanto, que Biden optou por estimular a economia dos Estados Unidos de modo orçamental, sem de forma alguma aumentar o proteccionismo, pelo menos por enquanto. A implicação óbvia disso para a economia indiana, de acordo com a maior parte dos observadores, seria estimulá-la, pois as exportações da Índia cresceriam com uma retomada da procura americana e mundial. No entanto, há uma diferença fundamental entre o contexto do imediato pós-guerra, quando um boom americano estimulado pelo Estado teria efeitos multiplicadores sobre a economia indiana, e o contexto actual. A diferença é que naquela época não havia globalização das finanças, enquanto hoje as finanças estão globalizadas. Uma consequência disto é que a taxa de juros de todos os países tem de ser alinhada com a dos EUA. Se, por exemplo, a taxa de juros na Índia for menor do que um valor igual à soma da taxa de juros dos EUA e uma compensação para contrabalançar o risco percebido de fazer um investimento financeiro na Índia em comparação com os EUA, então as financias simplesmente fluiriam da Índia para os EUA. Agora, por algum tempo, quando os EUA se abstinham do activismo orçamental, eles tentavam estimular a economia apenas por meio da política monetária e reduziam as taxas de juros a quase zero. Comutar para o activismo fiscal, por outro lado, significaria algum aumento nas taxas de juros dos EUA, o que de facto já começou a acontecer; e isso, por sua vez, significaria taxas de juros consequentemente mais altas em países como a Índia. O Reserve Bank of India já está a enfrentar problemas para manter baixas as taxas de juros dos títulos por causa do aumento nos rendimentos (yields) dos títulos dos EUA; mas este problema se tornará mais agudo ao longo do tempo. E com aumentos nas taxas de juros, haverá um novo desestímulo ao investimento. Há uma razão adicional para tal amortecimento, que é a inflação, uma questão que neste momento está a ser fortemente debatida nos Estados Unidos. Muitos economistas, pertencentes ao espectro do centro-direita, temem que a estimulação da economia dos EUA na medida proposta por Biden desencadeie a inflação naquele país, ao passo que outros pertencentes ao espectro de centro-esquerda desprezam tais temores de inflação. Contudo, surpreendentemente toda esta discussão acerca da inflação tem-se mantido centrada exclusivamente nos EUA, sem explorar a possibilidade da inflação em outros países que o estímulo norte-americano pode gerar. Esta questão é particularmente importante para a Índia e outros países do terceiro mundo, que fornecem uma variedade de commodities primárias para os EUA e para o mundo capitalista avançado em geral. O estímulo dos EUA quase certamente aumentará a procura por commodities primárias e, portanto, os seus preços. Apesar de tido poder não ter muitas consequências para a taxa de inflação dos EUA, isto certamente elevará a taxa de inflação em fornecedores de commodities primárias do terceiro mundo, como a Índia. A resposta política a um tal aumento na inflação das commodities primárias será precisamente o oposto do que deveria ser sob um regime de finanças globalizadas – e o oposto do que teria sido sob o regime dirigista do pós-guerra. O aumento de preços das commodities primárias devido a um aumento repentino na procura deveria, idealmente, ampliar os esforços do Estado para aumentar a oferta dessas commodities através do aumento do investimento público em esferas cruciais para a sua produção. Mas, sob um regime de finanças globalizadas, a resposta política será reduzir o investimento público, e os gastos públicos em geral, de modo a que não haja aumento de oferta mas sim redução da procura interna, para manter a inflação sob controle. Em suma, a austeridade será imposta à economia fornecedora de commodities primárias, de modo a que o seu nível de actividade e, portanto, a sua taxa de crescimento seja restringida por esta razão. Assim, para uma economia como a da Índia, se bem que haja algum aumento de exportações por conta do pacote de Biden, isto seria acompanhado por uma compressão geral no nível de actividade e crescimento, de modo que bastantes commodities primárias fossem expulsas da absorção interna a fim de conter pressões do excesso de procura e portanto da inflação. Não era este o caso durante o boom pós-segunda guerra mundial. Os governos não eram obrigados a obedecer aos ditames das finanças. Consequentemente, um aumento nos preços das commodities primárias era acompanhado por esforços do governo, incluindo maiores investimentos, para aumentar a oferta de tais commodities, ao invés de restringir a sua absorção interna através da redução de gastos governamentais. Por isso, um boom mundial naquele período só podia ter um efeito estimulante sobre a economia indiana e não um efeito contraccionista. Em suma, o pacote de Biden é baseado numa suposição insustentável, ou seja, que uma política keynesiana de estimulação da economia através de meios orçamentais pode ser seguida, enquanto é ignorada a prescrição keynesiana de que “as finanças acima de tudo devem ser nacionais”. Esta suposição insustentável, por sua vez, deriva da ilusão de que a economia mundial como um todo pode sair da crise prolongada à qual foi remetida pelo capitalismo neoliberal sem aplicar quaisquer restrições aos movimentos da finança, ou seja, que a hegemonia das finanças realmente não importa para o nível da actividade económica mundial. Mas, embora o Estado dos EUA não possa ser prejudicado pela hegemonia das finanças, ou mesmo os Estados dos países avançados como um todo a actuarem de modo coordenado, os Estados dos países do terceiro mundo não são tão afortunados. Em vez de pedir uma mudança na ordem económica internacional pela qual os Estados-nação readquiram outra vez a sua autonomia em relação às finanças agora globalizadas, o pacote Biden simplesmente presume que dentro da ordem actual podemos voltar aos tempos da gestão da procura keynesiana em benefício de todos os países. A insustentabilidade básica dessa suposição se exprimirá no facto de que a busca do estímulo fiscal extraordinariamente ambicioso visualizado por Joe Biden só acentuará a divisão global, com os países avançados a adiantarem-se com crescimento enquanto os países do terceiro mundo permanecem afundados no desemprego agudo e na austeridade orçamental. As políticas discriminatórias do FMI estão a trabalhar nesta direcção; mas mesmo sem o FMI, esta é a direcção espontânea que tomará a economia mundial dominada pelas finanças, se romper sua actual estagnação generalizada através da iniciativa dos Estados Unidos ou, mais genericamente, de um país avançado. O pacote de Biden é bem intencionado e tem o apoio da esquerda dos países avançados; mas esta esquerda também precisa ser mais sensível à situação dos países do terceiro mundo. 19/Abril/2021
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia O original encontra-se em Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ |