Emiliano José*
Tem é tempo, né? Já decorrem cinco décadas da primeira edição de As veias abertas da América Latina, memorável livro de Eduardo Galeano, a nos fazer mergulhar numa história cheia de idas e vindas. De um lado, a direita acredita sempre poder derrotar sonhos. De outro, em alguns nichos de esquerda há o predomínio de um pensamento desejoso, a pensar numa espécie de linha contínua em direção ao progresso. Nem um, nem outro. A história caminha no vai-e-vem da luta dos povos, e não de acordo com palavras-de-ordem, cuja força podem ajudar, mas não resolvem. E a história também não caminha ao sabor dos interesses imperiais ou de classes dominantes, a acreditar possam parar a movimentação das classes trabalhadoras.
Eduardo Galeano
Numa homenagem a Galeano, lanço um olhar aligeirado sobre a nossa sofrida América Latina. Tem pouco tempo, e o Continente viveu um momento rico, desde a chegada de Hugo Chavez à presidência da Venezuela, em 1999. Os primeiros anos do novo milênio marcaram o início de governos progressistas e de esquerda na América Latina. Foram anos de transformações importantes na vida dos povos do Continente: democracia, participação popular, distribuição de renda, melhoria nas condições de vida dos povos. Diferentes modos de produzir mudanças, porque cada nação com sua cultura e seu jeito de levar a história adiante, de fazer política. Foi momento rico, de irmandade entre esses países. Foi época rica para a esquerda.
Nem sempre a caminhada da esquerda obedece aos cânones estabelecidos pelos manuais. Nunca obedece. São a correlação de forças, as singularidades de cada povo os ingredientes essenciais a determinarem como as coisas da política se dão em cada país. A Venezuela não é o Brasil. A Argentina não é a Bolívia. O Equador não é a Nicarágua. Cuba não é o Uruguai. Podem me alertar, sei: isso é quase senso comum. Mas, volta e meia, somos tentados a pretender ditar modelos rígidos, como se tivessem alguma utilidade. O fato é que nesse caldeirão de diversidades políticas do Continente, naquela década e pouco, assistimos a muitas mudanças, protagonizadas pela esquerda.
As lideranças são intérpretes da movimentação dos povos. E o Continente produziu, nessa fase, notáveis líderes. A maior delas, sem considerar Fidel Castro, Lula, cuja estrela brilha até os dias atuais. E vieram Mujica, Rafael Corrêa, Evo Morales, Nestor Kirchner, Cristina Kirchner, Fernando Lugo, Manuel Zelaya, para lembrar algumas dessas lideranças.
Talvez pudéssemos arriscar ter sido essa fase de ouro do Continente uma resposta da esquerda, tardia fosse, ao momento trágico vivido pelo Continente, com a emergência das ditaduras, fase inaugurada com o golpe de 1964 no Brasil, duas décadas de terror e obscurantismo. Diante desse avanço da esquerda no início do milênio, a direita se movimentou, impulsionada pelo império americano, inconformada com o início do desmonte de privilégios.
E veio uma nova fase de golpes, não mais acionados com os tanques nas ruas, com prisões, torturas e mortes. Agora, eram golpes midiáticos-parlamentares-jurídicos, a larga utilização do lawfare, a tornar-se uma praga no Continente, bem articulada. No caso brasileiro, sentimos isso muito de perto, com a prisão e proibição do presidente Lula ser candidato em 2018, e ele tendo de passar 580 dias preso, apesar, como reconhecido pelo STF, de ser inocente.
Mas, os povos se movimentam. Como dissemos, de acordo com as singularidades, a cultura de cada nação, a história caminha, dá voltas. E vimos tantos países voltarem ao caminho progressista. Talvez o mais impressionante tenha sido, pela velocidade da reação popular, o da Bolívia. Em pouquíssimo tempo, o povo boliviano se levantou contra o golpe sofrido por Evo Morales, elegeu Luís Arce, e recebeu Morales em festa novamente.
Assim, com a Argentina. A derrota do neoliberal Maurício Macri mostrou a força do peronismo, fenômeno político de notável expressão. Notável a vitória de Alberto Fernández, firmando-se como impressionante liderança. Não se negue a representatividade de Cristina Kirchner, vítima constante do lawfare, a contribuir para essa virada. Honduras, agora, dá outra lição à direita: o povo elege Xiomara Castro, mulher do ex-presidente Manuel Zelaya, vítima de golpe em 2009.
E o último episódio, a vitória de Gabriel Boric, um jovem de 35 anos no Chile, cuja chegada à presidência decorre de um impressionante movimento popular, a refletir nas urnas. Do golpe de setembro de 1973 até agora, são decorridos quase cinco décadas. Chile enfrentou um cruel experimento, precursor do neoliberalismo no mundo, a privatizar saúde e ensino, entre tantos crimes contra a população. Governos democráticos pós-Pinochet não conseguiram mexer nas estruturas. Agora, Boric terá o grande desafio de responder à impressionante voz das ruas, e garantir demandas reprimidas por tanto tempo, tarefa talvez impossível de cumprir num único mandato.
Ensino público, saúde pública, previdência garantida a aposentados, enquadrar Forças Armadas tão violentas e cruéis são tarefas complexas, a exigir firmeza, população mobilizada, habilidade em fazer alianças amplas, chamar forças democráticas para além da esquerda a sustentar tal programa. Momento histórico, podendo ser uma espécie de novo modelo para o Continente, se, como já dito, conseguir juntar forças políticas para levá-lo à frente.
Allende tentou, resistiu até o fim. Tentou pelos caminhos da democracia, rigorosamente. Os militares, estimulados pelos EUA, o levaram à morte. Os tempos são outros. Mas, é prudente nunca deixar de recorrer às lembranças da história. E está certo o jovem Boric: continuar a caminhar nos trilhos da democracia. Foram décadas para chegar a esse ponto. Agora, é dar os passos necessários, buscando sempre ampliar o leque de apoios, para não dar passos atrás. Até porque Chile derrotou José Antonio Kast, cuja pretensão era radicalizar o perverso neoliberalismo chileno. Derrotá-lo foi uma senha, a senha de um novo caminho para o Continente.
EUA mantêm os olhos voltados para a América Latina. Ainda mais depois da derrota humilhante no Afeganistão. Não descansa da ofensiva contra Cuba, para eles uma afronta, a persistir desde 1959, não obstante o criminoso bloqueio, cujo rigor se acentuou nos últimos anos. Penso ser dever de todo o pensamento progressista a defesa da autodeterminação da Ilha, um exemplo de resistência à violência do império norte-americano. A mesma linha de defesa de autodeterminação vale para outros países latino-americanos, como Venezuela e Nicarágua.
Brasil à beira de uma eleição, e Lula vai despontando como o grande favorito, depois da perseguição obstinada de que foi vítima, liderada pelo juiz Sérgio Moro, sabida e publicamente orientado desde os EUA, a contar, ainda, com a cumplicidade da mídia empresarial, sempre protagonista de golpes e do pensamento mais conservador do País.
A batalha para eleger Lula é essencial para a Nação, para a América Latina e para o mundo democrático, progressista e de esquerda. Não há exagero ao dizer isso. Quando presidente, Lula foi capaz de liderar o Sul do mundo, teve papel destacado no Continente sem qualquer arrogância, e desenvolveu uma impressionante atuação diplomática voltada à paz e ao combate à fome. Neste último caso, conseguiu eliminar a fome no Brasil e essa experiência dava a ele autoridade para discutir o problema em relação a toda a humanidade.
Não estou entre os iludidos com batalha fácil, com jogo ganho. Temos classes dominantes ciosas de seus privilégios, e prontas sempre a tentar impedir a ascensão de quem pretenda distribuir renda e diminuir privilégios, diminuir que seja. Foi sempre esta a história de tais classes, e não foi por outra razão o golpe dado contra a presidenta Dilma, pra lembrar o último. Nossa mídia empresarial sempre luta a favor do pensamento mais conservador, e age assim nas eleições, partidariamente. Não é por acaso a atitude entusiasmada com Moro.
Lula está certo em procurar alianças ao centro. Se é Alckmin, não sei. Ele sabe da importância de ampliar o leque. A eleição de Bolsonaro foi demonstração da existência de um forte contingente de pessoas próximas, às vezes entusiasmadas, com os pensamentos retrógrados, reacionários. Sabe ainda da necessidade de dialogar com esse contingente, fazer a batalha político-cultural, e um dos elementos para tal diálogo é ter como vice uma figura capaz de ajudar nessa tarefa.
Creio: nosso povo está se movimentando. A preferência por Lula é indício claro disso. O único caminho para mudanças é a consciência e a mobilização populares. Lula é, sempre foi, expressão disso. Espera-se ainda sejamos capazes de mudar a face do Congresso, de modo a que o novo governo, necessariamente de reconstrução nacional, tenha apoio para desenvolver políticas capazes de melhorar a vida do povo, recuperar nossa soberania, e voltar a ter protagonismo no mundo. Oxalá consigamos tudo isso.
*Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros