Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
Em resumo, sanções norte-americanas são fáceis de impor, mas nada fáceis de cancelar – mesmo temporariamente. Levantar completamente as sanções é quase completamente impossível em termos institucionais.
Se se toma o Oriente Médio como sistema complexo de rede, pode-se ver várias dinâmicas que agora já alcançam pleno potencial para mudar completamente a matriz regional – para encaminhá-la em nova trilha.
Algumas dessas ‘sementes’ foram semeadas há algum tempo: o presidente Putin, em 2007 em Munich, disse à plateia predominantemente ocidental que o Ocidente adotara posição adversária em relação à Rússia e a desafiara. ‘Ok’, disse Putin: Aceitamos o desafio. E venceremos. A fala de Putin foi recebida com escárnio ostensivo pelo público em Munich.
Agora, muitos anos passados, depois das discussões acaloradas em Anchorage, a resposta de Putin emergiu em pleno vigor: a China disse a Washington, sem meias palavras, que recusava a imposição de valores e da hegemonia do ocidente. A China assim aceitava, como a Rússia, antes, o ‘desafio ocidental’: o país tem valores e visão próprios que desejava manter e preservar; e observava que os EUA não estavam em posição de força para exigir qualquer coisa diferente disso. China (ou Rússia) não querem guerra com os EUA – tampouco querem Guerra Fria –, mas os dois países mantêm-se firmes na defesa de suas ‘linhas vermelhas’. E a China ainda esclareceu que os dois países devem ser compreendidos literalmente (no sentido de “não estavam fazendo cena”).
Dois dias adiante, o ministro de Relações Exteriores da China e Lavrov aconselharam outros estados a sequer considerarem a possibilidade de se alinhar com os EUA contra o ‘time’ conjunto Rússia-China; daria em nada. Poucos dias depois, Wang Li estava no Oriente Médio – Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e depois Teerã. A mensagem era uniforme: livrem-se do jugo da hegemonia; resistam contra ‘pressões’ em questões de direitos humanos; e abracem a própria soberania. Atravessara-se um Rubicão.
No Irã, o ministro de Relações Exteriores Wang Li assinou em princípio o equivalente a $400 bilhões para projetos de infraestrutura de transporte e energia. Da perspectiva da China, uma teia-de-aranha eurasiana de ferrovias e gasodutos que se interconectam corta potencialmente os custos de transporte; cria novos mercados – e investir na energia iraniana garante segurança energética à China.
O mapa do caminho chinês-iraniano contudo também visa à cooperação em questões de segurança (com a China endossando o ingresso do Irã como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai, OCX (ing. SCO), exercícios navais conjuntos, compartilhamento de inteligência e mais. Ainda mais significativa talvez será a incorporação do Irã à Rota da Seda Digital Eurasiana (ing. Eurasian Digital Silk Road, da integração de telecomunicações com cabo de fibra ótica, da China à França, 5G, sistemas de Inteligência Artificial (IA) ‘Smart City’, plataformas de pagamento digital (Kyle Bass, administrador norte-americano de hedge fund, estima que o sistema digital chinês de compensações e pagamentos alcançará 62% da população mundial), analítica de armazenamento em nuvem, e estruturas de internet ‘soberana’.
O Irã, embora ainda não seja parte da Rota da Seda Digital, já é efetivamente (informalmente) ‘chinês’, em termos digitais, assim como a Ásia Ocidental. Algumas estimativas sugerem que 1/3 dos países que participam da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) – até o momento, 138 – estão cooperando em projetos da Rota da Seda Digital.
Narrativas ocidentais de modo geral superestimam a extensão em que projetos relacionados à Rota da Seda Digital são parte de estratégia coordenada chinesa. Fato é que projetos reunidos no que se conhece como Rota da Seda Digital são em vasta medida projetos de iniciativa privada, e permitem que empresas chinesas tirem vantagem da política de apoio que há sob a ‘grife’ “Rota da Seda Digital” (uma espécie de franquia), ao mesmo tempo em que respondem à demanda crescente por infraestrutura digital nos países ICE. Até recentemente, entendia-se a Iniciativa Cinturão e Estrada mais por parâmetros tradicionais (ferrovias e oleogasodutos), do que como ‘estrada’ digital; mas é como estrada digital, que se demarcará uma ‘Eurásia com padrões chineses’, diferente do Ocidente.
Só para esclarecer: como quer que se fatie a matriz de interconectividade de ‘cobras e escadas’ da ICE – seja leste-oeste, ou norte-sul – o Irã está sempre no centro do mapa. O ponto aqui é que muito do terço norte do Oriente Médio – do Paquistão ao Cáspio, ao Mar Negro ao Mediterrâneo e Europa – aparece na mesa de desenho de Moscou e Pequim.
Conforme a rede física e digital emerge de sua crisálida, nenhum estado do Golfo conseguirá desconsiderar completamente essa entidade geopolítica que se vai desdobrando, de Vladivostok a Xingjian. De fato, aqueles estados sequer a estão desconsiderando; estão cautelosamente (atentos à ira de Washington) estendendo tentáculos na direção de Moscou e Pequim (sauditas e Emirados Árabes Unidos já estão integrados à Rota da Seda Digital) – mas parece pouco provável que abracem o porco inteiro[1] do pleno engajamento, como o Irã fez com a China. Por quanto tempo é viável manter os malabarismos de protocolos e padrões chineses e protocolos ocidentais é questão ainda aberta –, mas a eventual duplicação de normas logo se torna incômoda e cara.
É sobre esse contexto de ‘lado-certo-da-história’ que se devem considerar as negociações do ‘acordo nuclear’ (JCPOA) com o Irã. O Departamento de Estado indica que os círculos Biden insistem que os EUA agirão em conformidade; mas funcionários dizem também que algumas sanções permanecerão (sem especificar nem número nem tipo). Não se pode dizer que seja surpreendente.
Há coisa como 1.600 sanções impostas pós-JCPOA, somadas as que já eram vigentes nos termos da (lei) Iran Sanctions Act, de 1996; da (lei) Comprehensive Iran Sanctions, Accountability, and Divestment Act, de 2010; da Seção 1245 da (lei) National Defense Authorization Act para o Ano Fiscal de 2012; da (lei) Iran Threat Reduction and Syria Human Rights Act, de 2012; da (lei) Iran Freedom and Counter-Proliferation Act, de 2012; da (lei) International Emergency Economic Powers Act; e da (lei) Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act, CAATSA, de 2017!
O governo Obama assinou a maior parte do alívio de sanções sob o ‘acordo nuclear’ (JCPOA), com renúncia de pontos de segurança nacional. Também manteve várias sanções, incluindo o embargo de grande parte do comércio dos EUA com o Irã, sanções contra o Corpo de Guardas Revolucionários do Irã e outras sanções relacionadas a um suposto apoio que o Irã daria ao terrorismo, e associadas ao programa do míssil balístico do Irã. Mas as ressalvas relacionadas à segurança nacional têm limite temporal, de modo geral válidas por 120 ou 180 dias, dependendo da sanção específica, e algumas exigem que o governo justifique qualquer ‘alívio’ nas sanções e apresente argumentos que justifiquem a concessão, para que o Congresso os aprecie.
Em resumo, sanções norte-americanas são fáceis de impor, mas nada fáceis de cancelar – mesmo temporariamente. Levantar completamente as sanções é quase completamente impossível, em termos institucionais.
Ainda não se tem perfeita clareza sobre se o governo dos EUA poderia aceitar o fim de sanções – ainda que assim o desejasse (e não há clareza sequer sobre a amplitude da motivação de Biden para levantar sanções). Houve recentemente duas cartas bipartidárias do Congresso dirigidas a Blinken manifestando oposição a qualquer reativação do ‘acordo’ (uma delas, com 140 assinaturas de congressistas). Deve-se esperar para ver.
No entanto, com o Irã nocionalmente ‘no Acordo’ – mas com EUA ‘fora’ – já haverá mudança significativa do jogo regional, especialmente se em junho for eleito presidente conservador no Irã.
As consequências serão sentidas na região. As pressões para expulsar as forças dos EUA dos estados do norte aumentarão significativamente.
Uma terceira dinâmica (do tempo de Obama), é que os EUA, com relutância, estão-se desengajando da região. Isso, claro, deu ânimo a alguns estados para normalização com Israel – para se abrigarem sob seu guarda-chuva de segurança.
Outra dinâmica é que o fim da era Netanyahu (com sua obsessão em confrontar o Irã) pode estar-se aproximando. Israel agora está completamente fragmentada no nível da tomada de decisão: o gabinete de segurança não se reúne; não há supervisão que controle o processo decisório ‘eu-sozinho’ do primeiro-ministro; e instituições de segurança pressionam rumo ao vazio, tentando encontrar alguma vantagem sobre seus rivais.
Netanyahu tenta, possivelmente, sinalizar para Washington que ele tem um veto em qualquer ‘acordo’ com o Irã, e comentaristas israelenses suspeitam também que o primeiro-ministro esteja induzindo atmosfera de crise em Israel, para forçar os pequenos partidos a aderir a um governo liderado por ele.
Bibi Netanyahu tem menos de três semanas para encontrar 61 votos no Parlamento – ou enfrentará a possibilidade de ser preso por suborno e corrupção. (O julgamento já teve início). A realidade é que nenhuma coesão voltará à política israelense, Netanyahu sobreviva ou não. Israel está amargamente dividida em excesso de fronts.
Em resumo, muitos funcionários israelenses temem que suas várias agências, na ausência de qualquer supervisão real ou de coordenação de políticas, acabem por ter alcance exagerado – e entrem num arriscado ciclo militar de escalada, com o Irã.
Washington está no buraco: Netanyahu e o Mossad venderam ao time Biden o meme de que os iranianos estariam secretamente, hoje, implorando que os EUA voltem ao ‘acordo nuclear’ (JCPOA). Não é verdade. Netanyahu insiste nessa linha, para validar a própria hipótese, que ele há tanto tempo promove, de que pressão máxima poria de joelhos o Irã. Para tentar provar seu ponto, quer manter pressão máxima (talvez ‘para sempre’).
A premissa de Netanyahu sempre foi que o Irã, posto de joelhos, imploraria que lhe permitissem voltar ao ‘acordo nuclear’ (JCPOA). Errou – e muitos israelenses agora sabem disso. Mas talvez essa análise israelense politicamente distorcida tenha sido o fator que levou o time Biden a supor que o Irã aceitaria cumprir todas as exigências do ‘acordo nuclear’, mesmo que os EUA não assumissem compromisso algum. E que, ainda mais, o Irã aceitaria que se mantivessem “algumas” sanções. Biden e Netanyahu erraram em todas as frentes.*******
[1] Orig. go the whole hog. É expressão idiomática, sem tradução. Fica aí, pelo menos, o ‘conteúdo’ literal [NTs].
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