O terrorismo do ISIS.
por Diana Johnstone [*]
Poucos eventos promissores quebraram tanto as suas promessas quanto o que foi otimisticamente chamado de Primavera Árabe. Há dez anos atrás, grandes manifestações de protesto que começaram na Tunísia e rapidamente se espalharam pelo Egito, foram saudadas como arautos da democracia que iria invadir o Médio Oriente, como por um toque de varinha mágica.
Não foi assim que aconteceu. O resultado tem sido a desmoralização na Tunísia, um regime militar fortalecido no Egito, a destruição da Líbia como uma nação viável, guerra e fome sem fim no Iémen, uma Síria em ruínas e nenhuma beliscadura nas nações mais autocráticas da região, a começar pela a Arábia Saudita e o Qatar.
A Líbia ofereceu uma prova decisiva de que “livrar-se de um ditador” não transforma automaticamente um país numa nova Suíça.
A lição a tirar é que, quando se trata de tentar unir e modernizar Estados-nação relativamente novos (especialmente no ambiente hostil do Médio Oriente), as imperfeições dos modos de governo que emergem podem corresponder à necessidade de lidar com grupos tribais, étnicos e religiosos potencialmente antagónicos. Se a casca for quebrada, o resultado pode ser o caos, em vez de rivalidades cuidadas e pacificas entre partidos no seio de uma democracia representativa ocidental – uma norma política bastante recente na história da Humanidade.
Democracia e revolução
Essa norma foi muito mais o produto de uma evolução crescente do poder económico e da influência da burguesia na sociedade ocidental do que de uma revolução violenta, embora esse processo envolvesse revoltas violentas na França e nas colónias do Império Britânico. No entanto, ao longo do século XX, a revolução foi associada não à instituição dos sistemas eleitorais – a democracia como é entendida atualmente – mas antes a ir além dessa “democracia formal” para instituir a mudança do sistema económico, a saber o socialismo.
Isso era o que os movimentos revolucionários, designadamente os rotulados como anarquistas ou trotskistas, tinham em mente. Na realidade, verdadeiras revoluções não são ocorrências frequentes. À medida que a perspectiva de tal revolução social no Ocidente se desvanecia, os revolucionários ocidentais começaram a saudar qualquer movimento contra Estados não ocidentais como sendo revolucionário, progressista, se não socialista, pelo menos “democrático”.
Para esses nostálgicos de revoluções que não aconteceram, todo o levantamento antigovernamental encontra auxiliares à distância prontos a aclama-los: os “kosovares” na Sérvia, os curdos em qualquer lugar, os chechenos quando explodiram teatros e escolas na Rússia, os manifestantes em Benghazi (que eram na verdade fundamentalistas islâmicos, ao contrário do que se dizia então), os uigures agora.
Em 27 de março, esses revolucionários por procuração marcaram o 10º aniversário da guerra na Síria, patrocinando uma declaração de 65 exilados sírios [1] que são oponentes de longa data do partido governante Baath na Síria. O académico franco-libanês Gilbert Achcar tomou a iniciativa de reunir mais de 300 signatários de diversos países. A essência da mensagem é condenar os escritores independentes americanos e ocidentais contra a guerra pela sua falta de apoio à revolução síria que nunca aconteceu.
Na verdade, a revolução democrática síria com a qual esses exilados se identificam não aconteceu. Manifestações e repressão não fazem uma revolução. Os eventos desencadeados no início de 2011 foram rapidamente sequestrados por rebeldes armados, apoiados por uma série de potências estrangeiras que aspiram usar a desordem criada para despedaçar a Síria – um objetivo político de longo prazo de Israel que não encontra oposição da Arábia Saudita, Qatar, Turquia ou seus amigos em Washington. O regime nacionalista árabe da Síria está no topo da sua lista de alvos desde há décadas.
Muitos desses 65 exilados sírios ensinam em universidades ocidentais. O seu texto apresenta claramente a Síria como uma dicotomia entre oponentes como eles e Bashar al Assad. Acusam os escritores anti-guerra de apoiar Assad e de “desumanizar” o povo sírio ao ignorar indivíduos que se opuseram e sofreram com o regime no passado.
Mas o verdadeiro conflito que existe na Síria atualmente não é entre Bashar al Assad e 65 intelectuais exilados. Proclamar “apoio” aos intelectuais ocidentalizados que se opõem a Assad é totalmente irrelevante para a situação existente. Os exilados poderiam razoavelmente culpar pela sua irrelevância a CIA, que gastou uns mil milhões de dólares por ano, em conluio com a Arábia Saudita, como parte da operação clandestina Timber Sycamore, para armar e treinar rebeldes islâmicos oponentes, ao regime laico Baath, fazendo da luta contra Assad, uma jihad internacional imbuída de wahhabismo.
A Síria ainda está a ser atacada
Partes da Síria ainda estão ocupadas de forma hostil pelos islâmicos com o apoio da Turquia em torno de Idlib no noroeste, pelos Estados Unidos nas regiões petrolíferas no nordeste e por Israel nas Colinas de Golã. Como garantia, Israel bombardeia a Síria de vez em quando.
O país está sendo deliberadamente estrangulado pelas sanções americanas.
Nada disto é mencionado pelos exilados sírios que se sentem agredidos por escritores “autoproclamados anti-imperialistas”, que defendem o fim das sanções que privam os sírios que vivem no seu próprio país, de alimentos, remédios e outras necessidades vitais.
A democracia só pode ser levada a uma nação pelo seu próprio povo. No entanto, as figuras da oposição em muitos países são encorajadas pela National Endowment for Democracy e por canais menos abertos a pensar que o apoio dos EUA pode ajudá-los a livrarem-se dos líderes que odeiam e até mesmo dar-lhes um papel de relevo num novo regime. Tais figuras estiveram ativas na invasão do Iraque e na destruição da Líbia. Na situação atual, a principal coisa que esses exilados sírios pró-Ocidente podem fazer para obter esse apoio é usar a seu estatuto de vítimas para atacarem os críticos da política externa dos EUA.
Eles uniram-se para esse fim, publicando uma diatribe contra a maioria dos jornalistas independentes que tentam educar o público sobre a política de guerra dos Estados Unidos. O texto original citava especificamente os repórteres de investigação da Grey Zone, Max Blumenthal, Aaron Maté, Ben Norton; bem como Rania Khalek, Caitlin Johnstone, Jimmy Dore, Antiwar.com, Kim Iversen, Mint Press News, Consortium News e muitos mais.
Estes nomes foram riscados por Achcar para induzir Noam Chomsky a afixar sua própria assinatura, que tem alto valor persuasivo. [2]
Aaron Maté, de GrayZone, diz que Chomsky defendeu a colocação da sua assinatura alegando que sem mencionar esses nomes, a carta é apenas uma “declaração abstrata de princípio”, “expressando apoio geral às pessoas”.
Mas para que pessoas? Ao reduzir a Síria a um confronto entre eles e Assad, esses intelectuais exilados rejeitam como insignificantes os milhões de sírios na Síria que, qualquer que seja sua atitude em relação ao governo, o apoiam de preferência ao caos ou ao domínio de fanáticos islâmicos. Apoiar esses exilados sírios equivale a atacar escritores que fazem o que o próprio Chomsky fez historicamente: priorizar as críticas ao seu próprio governo, que pode teoricamente influenciar, em vez de afirmar ser capaz de influenciar a política interna de países estrangeiros.
Ao longo da carta, afirma-se que as críticas à interferência dos EUA na Síria são:
1 – motivadas por seu “apoio a Assad” e
2 – influenciadas pelo seu alinhamento com a Rússia e a China.
Nenhuma evidência ou exemplo é fornecido para apoiar essas alegações mais do que improváveis. Turquia, Arábia Saudita e Qatar não são mencionados e o envolvimento dos EUA é minimizado:
“Mas a América não está no centro do que aconteceu na Síria, apesar do que essas pessoas afirmam. A ideia de que de alguma forma estaria, apesar de todas as evidências em contrário, é um subproduto de uma cultura política provinciana que enfatiza tanto a centralidade do poder dos EUA globalmente quanto a lei imperialista de identificar quem são os “bons” e os “maus” qualquer que seja o contexto”.
Aqui está uma declaração vazia de sentido. Os Estados Unidos estão sentados no petróleo sírio, deixando-o ser desviado para a Turquia, fazendo de tudo para impedir a reconstrução do país, mas não é “central” para o que aconteceu na Síria. E é necessária uma dita “cultura política provinciana” para salientar a “centralidade do poder americano a um nível global”.
E que “princípio” é defendido aqui? Acusam-se os escritores vilões de nada menos do que reforçar “um status quo disfuncional e impedir o desenvolvimento de uma abordagem verdadeiramente progressista e internacional da política mundial; uma abordagem de que precisamos desesperadamente, dados os desafios globais de responder ao aquecimento global”.
Hein? Mas o que é que isto significa? O que é essa “abordagem genuinamente progressista e internacional da política mundial” a que aspiram? O que iria realizar e como? Nem a menor pista.
E a diatribe conclui:
“Este é o “anti-imperialismo” e o “esquerdismo” da gente sem princípios, dos preguiçosos e dos ingénuos, e isso só reforça a disfunção do impasse internacional que se verifica no Conselho de Segurança da ONU. Esperamos que os leitores desta carta se juntem a nós para se oporem”.
Esta acusação hipócrita e incoerente contra verdadeiros escritores anti-imperialistas independentes surge num momento em que a agressividade de Washington atinge novos níveis de intensidade e muitos escritores anti-guerra enfrentam crescentes tentativas de marginalização, se não de censura. Portanto, é inteiramente apropriado rotulá-los com o rótulo de “anti-imperialismo dos idiotas”.
Para responder aos colocadores de etiquetas na sua língua, deixem-me dizer que os promotores desta carta desprezível estão praticando um anti-imperialismo de embuste. O truque é enganar as pessoas para que vejam o imperialismo em lugares tão diferentes que acaba por ficar neutralizado.
Os Estados Unidos têm um orçamento militar que excede o de todos os seus principais adversários e aliados juntos, opera quase mil bases em redor do mundo, destrói país após país com sanções e subversão, claramente querem mudar regimes, mesmo na Rússia e na China, e praticar jogos de guerra nuclear nas suas fronteiras. As suas reivindicações de hegemonia global são flagrantes e assustadoras.
Mas se uma nação resiste a este ataque global, ela também deve ser imperialista e, portanto, condenável. Portanto, para ser um anti-imperialista aprovado por Achcar, você pode falar mal dos Estados Unidos, mas também deve falar mal de qualquer nação que tenha capacidade e vontade de lhes resistir, porque também deve ser “imperialista”. Assim, você pode congratular-se por ser um “anti-imperialista” perfeitamente puro e absolutamente inútil.
Não, não somos idiotas.
[1] www.aljumhuriya.net/en/…
[2] Lista completa dos nomes em 1:31.13 de www.youtube.com/watch?v=QxtzgHRHxQU
[*] Autora de Hillary Clinton. La Reine Du Chaos e Fools’ Crusade : Yugoslavia, Nato, and Western Delusions . O seu último livro é Circle in the Darkness: Memoirs of a World Watcher (Clarity Press). As memórias do pai de Diana Johnstone, Paul H. Johnstone, From MAD to Madness , foram publicadas por Clarity Press, com os seus comentários. diana.johnstone@wanadoo.fr
A versão em francês encontra-se em www.legrandsoir.info/l-imperialisme-de-la-duperie.html
Este artigo encontra-se em https://resistir.info