Heba Ayyad*
A perseguição e violência orquestrada contra a população palestina faz parte do processo de construção do Estado israelense, sendo a eliminação do grupo um projeto ainda atual.
O movimento que fundamenta essa proposta é o sionismo e precede o início da ocupação de terras palestinas das políticas de limpeza étnica.
Tendo isto em vista, o presente artigo pretende desenvolver a análise acerca das políticas violentas, ainda em andamento, promovidas contra a população palestina, evidenciando o apoio de potências ocidentais para a estruturação do Estado israelense.
Contextualização da História Palestina
Em 1948, três quartos da população palestina se viram forçados a abandonar suas terras e seu país quando colonizadores sionistas engajaram uma luta armada, usando o terror e a superioridade militar para expulsá-los de suas cidades. O processo de ocupação ilegal de terras palestinas, de êxodo da população árabe e de políticas de limpeza étnica, que viria a ser conhecido como “al-Nakba”, ou “A catástrofe”, começa em 1947 e pode ser dividido em quatro estágios. O primeiro estágio começou em 29 de novembro deste mesmo ano, com uma resolução da ONU para dividir a então região da Palestina em um Estado árabe e um Estado judaico.
Nesse contexto, a população do território destinado aos judeus, que ainda não eram um Estado propriamente dito, contava com aproximadamente um milhão de pessoas, das quais 42% eram árabes. Frente a essa realidade, as lideranças sionistas [i] decidiram que a melhor maneira de lidar com este cenário seria expulsando essas pessoas, se valendo de suas organizações paramilitares como o Haganah e o Irgun para perpetrar incursões militares contra cidades e vilarejos árabes, iniciando o êxodo palestino.
O segundo estágio começa em março de 1948, com o estabelecimento do chamado “Plano Dalet”, que consistia em uma sistematização operacional para a limpeza étnica palestina. O plano consistia em organizar as incursões militares para tomar o máximo de cidades e vilarejos possíveis do território destinado aos judeus, antes do fim do mandato britânico [ii] e culminou, entre tantos, no infame massacre de Deir Yassin, além de despovoar e ocupar diversos centros urbanos importantes. No dia 14 de maio de 1948 se encerra o mandato britânico e a Declaração de Independência de Israel é assinada, em hebreu, definindo Israel enquanto um Estado étnico judeu .
A declaração de independência de Israel causou uma reação imediata nos países árabes vizinhos, que haviam rejeitado o plano das Nações Unidas sobre a partição da Palestina. No dia seguinte à declaração, os exércitos combinados do Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Líbano, Iraque e Síria adentraram o território palestino com destino ao recém estabelecido Israel, iniciando a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948 – 1949) e marcando o início da terceira etapa do Nakba, onde os massacres e as estratégias de expulsão de palestinos e limpeza étnica continuaram, mesmo sob o contexto de guerra .
O quarto, último e inacabado estágio do Nakba se dá com o fim da guerra árabe-israelense, entre outubro de 1948 e o início de 1949. Israel ainda hoje usa a narrativa de que a guerra árabe-israelense foi uma guerra injusta, de muitos contra um, milagrosamente vencida pelo povo escolhido, mas devido sua superioridade militar [iii], o Estado recém-estabelecido foi capaz de anexar 77% do território palestina. O Nakba, no entanto, não se encerrou em 1949 e a quarta etapa, tecnicamente, não chegou ao seu fim. O diminuto território palestino, reduzido a dois territórios descontínuos, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, hoje é um Estado de jure, ou seja, com status legal apenas na teoria .
Colonização e o sionismo
O projeto por trás da criação do Estado israelense e da consequente violência contra o povo palestino precede 1948, sendo fundamentado por Theodor Herzl em 1895 — dois anos antes do primeiro Congresso Sionista. Considerado o fundador do movimento, Hertz dividiu o plano para o estabelecimento do Estado em duas etapas: i. expulsar a população presente na região pela fronteira ao negar emprego; ii. comprar terras dos palestinos mais afortunados. Ao contrário do que era esperado, a segunda parte do plano não se fez possível uma vez que grande parte dos proprietários recusou vender suas terras aos sionistas e, por isso, o projeto passou a depender da expulsão da população. Para isso, um processo de colonização e remoção involuntária foi iniciado. Neste momento, os judeus na Palestina constituíam menos de 5% da população na região, sendo em grande parte judeus árabes, que comumente se opunham ao sionismo .
Isto posto, nota-se o sionismo como elemento do projeto colonial europeu, sendo o Estado israelense, ainda na teoria de Herzl, um suposto muro de defesa da Europa para a Ásia e para a “barbárie” — evidenciando sua conexão com as potências imperialistas ocidentais. Ao olhar para a história, é possível notar o empenho desses atores na causa sionista e no desmantelamento da resistência Palestina e, por isso, uma mudança do patronato britânico para o clientelismo estadunidense, a potência em ascensão. Mais de meio século após o estabelecimento do Estado de Israel, é possível concluir que se não fosse pelo apoio ocidental, em especial dos Estados Unidos da América, as políticas de violências contra os palestinos e a imunidade frente a esses ataques no cenário internacional não se fariam possíveis .
Nesse contexto, nota-se que obras de apoio e comemoração em relação ao sionismo são bastante difundidas na academia, ainda que haja uma perspectiva crítica frequentemente tomada como antissemita (ZUREIK, 2016). Isso porque, a destruição da sociedade Palestina foi apagada pelo que passou a ser entendido no âmbito global como renascimento do povo judaico. Assim, a guerra de 1948 e a constituição do Estado de Israel passaram a simbolizar o renascimento dessa população após séculos de perseguição e genocídio na Europa, sobretudo a empenhada por nazistas no início do século XX. No entanto, para isso ser possível, foi necessária a exclusão dos palestinos da história, assim como a negação de sua existência para que, no melhor cenário, recebessem um apoio deficiente por parte da Organização das Nações Unidas.
A violência como um projeto em andamento
Em relatório, a Comissão Econômica e Social para a Ásia Ocidental (CESPAO) defende que as práticas adotadas pelo Estado de Israel a respeito de sua população árabe muçulmana e palestina, bem como a ocupação ilegal e o controle das fronteiras do território palestino, configuram uma prática de apartheid.
Tal relatório, divulgado em 2017, sofreu com intensas críticas por parte de sionistas, dos governos israelense e estadunidense, e até mesmo do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Após pressão por parte da ONU, o acesso ao documento foi deletado e, como forma de protesto, a subsecretária-geral da CESPAO.
As violações de direitos humanos cometidas por Israel em seu plano de colonização acontecem de diversas formas.
Os palestinos que vivem em cidades israelenses, apesar de terem direito a voto e a se elegerem, são tratados na prática como cidadãos de “segunda classe”, enfrentando dificuldades ao adquirir propriedades, por exemplo, ou sofrendo com graves violências policiais. Outra dimensão importante a se atentar é o bloqueio israelense imposto à Gaza, que junto a Cisjordânia, deveria integrar um Estado palestino.
Há mais de 15 anos Israel impõe um intenso bloqueio na região, controlando seus portos, suas estradas e seu espaço aéreo, limitando ao máximo o transporte e impedindo até mesmo que alimentos e água potável cheguem à região.
A grande parte da população palestina confinada em Gaza é privada de seu direito de ir e vir, convive com o desemprego, a fome, não têm acesso à água potável de qualidade, à rede de esgoto, dentre outros itens básicos de sobrevivência, além de não possuírem direito a passaporte, e muitas vezes, nem permissão para chegar à Cisjordânia — também de maioria árabe palestina .
Atualmente, o principal objetivo israelense é a consolidação de seu domínio sobre os territórios já conquistados e a repressão de qualquer resistência palestina. Para isso ser possível, assiste-se ao estabelecimento de inúmeros assentamentos ilegais ou “centros de colonização judaica” como técnica de conversão da conquista em anexação Isto posto, nota-se a Palestina contemporânea como totalmente dependente do arbítrio israelense, visto que precisa lidar com as incursões sionistas ao seu território.
Ou seja, ano após ano são perseguidos, mortos e despejados de seus lares ancestrais para a construção de assentamentos em territórios legalmente palestinos, para uma expansão, ilegítima, das fronteiras do Estado israelense .
Atualmente, 700 mil colonos vivem em assentamentos ilegais em Jerusalém Oriental e Cisjordânia. Uma grande parte foi estabelecida entre as décadas de 70 e 90, mas, nos últimos 20 anos, a população dobrou devido a uma série de políticas públicas que facilitam a reivindicação de propriedade palestina por judeus. O estabelecimento desses assentamentos fragmenta ainda mais o território palestino, separando a infraestrutura das cidades e vilarejos, dificultando o trânsito e integração comercial do território. Com isso, há planos para construção de 1700 novas unidades habitacionais em Jerusalém Ocidental, 9000 em Atarot, 3400 no leste de Jerusalém e outras 3000 unidades na Cisjordânia, o que evidencia uma intensificação da questão .
Um bom e recente exemplo sobre como são esses assentamentos, na prática, é o da revolta causada pelo despejo de seis famílias no bairro de Sheikh Jarrah, que viralizou nas redes sociais em 2021. Colonos israelenses entraram na justiça pela posse das propriedades em Jerusalém Oriental que, segundo eles, pertenciam a judeus antes da guerra árabe-israelense de 1948. A revolta culminou em uma enorme escalada de violência, incluindo sérios ataques policiais, ataques a mísseis do Hamas à Israel (imediatamente interceptados por seu moderno sistema de segurança), e dezenas de palestinos mortos — não havendo baixas israelenses, evidenciando a desigualdade do conflito .
Um dos mais recentes episódios de violação de direitos humanos demonstrado pelo aparato estatal Israelense a repercutir nas mídias ocidentais foi o assassinato de Shireen Abu Akleh, uma jornalista da Al Jazeera que morreu, ao ser baleada no rosto, enquanto cobria um ataque israelense à Cisjordânia. Outros jornalistas que cobriam o conflito também foram feridos e o primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, se justificou dizendo que “parece provável que palestinos armados — que estavam atirando indiscriminadamente no momento — tenham sido responsáveis pela lamentável morte da jornalista”. No entanto, evidências posteriores demonstram que as hostilidades partiram dos soldados israelenses, que abriram fogo em direção à imprensa. Para além da violência do ato em si, a polícia Israelense, mais tarde, atacou a procissão que se formou ao redor do velório da jornalista com bombas de efeito moral, agredindo também os palestinos que levavam o caixão, a fim de dispersar manifestantes comovidos por sua morte — impedindo-os até mesmo de viverem o luto de forma digna.
Considerações Finais
Após o fim da Segunda Grande Guerra, o Ocidente desenvolveu uma narrativa de redenção amplamente difundida pelos sionistas, que começaram a alinhar seus valores morais e sociais com os das grandes potências. Com isso, a população palestina, que vivia segundo seus próprios termos, teve de enfrentar violências, em seus mais graves níveis, partidas de um grupo que conta com amplo apoio político e militar no âmbito internacional. Isso explica, em partes, o porquê do al-Nakba ser um processo de violência ainda em andamento: a história palestina não é contada, ouvida ou divulgada — pelo contrário —, visto que os Estados mais influentes não estão dispostos a escutar e questionar o conflito e, em paralelo, apoiam a narrativa daquele que os violentam.
Isso posto, vê-se que a população palestina assiste à ausência de um apoio para a resolução desse problema ou, ao menos, redução das violências. Por isso, vive sob o constante sentimento de injustiça, de ausência de uma razão moral e de apatia daqueles que dominam o Sistema Internacional. Consequentemente, estão sob constante risco de terem sua história apagada em detrimento de uma narrativa e que não apenas não os escuta e os silencia, como também os depreciam.
Notas:
Antes de adentrarmos ao contexto histórico é necessário diferenciar os conceitos de semita, judeu e sionista, visto que muitas das críticas ao Estado de Israel, sobretudo no trato da questão Palestina, são encaradas por sionistas como Antissemitismo. Começando pelo termo mais amplo, “Semita” diz respeito a um tronco étnico-linguístico com origem cultural em comum, como o oromo, o aramaico e, os mais relevantes hoje, árabe e hebraico. “Judaísmo”, no que lhe concerne, se refere à religião monoteísta, surgida na Mesopotâmia no século XVIII a.c., assim como à etnia intrínseca àqueles povos que originalmente professavam essa religião, sendo, portanto, um grupo étnico e também religioso. O povo judaico se dispersou pelo mundo ainda no século VI a.c., e foi constantemente perseguido por toda sua história, o que culminou no holocausto perpetrado pela Alemanha Nazista e, por isso, a palavra “antissemitismo” é habitualmente utilizada para se referir ao ódio e perseguição aos judeus, sobretudo na Europa. O último termo, sionismo, é um movimento nacionalista judaico, do século XIX, que prega o retorno do povo judeu ao seu local de origem, onde ficava, até então, o território da Palestina sob mandato britânico.
O sionismo é uma vertente política do judaísmo e é a ideologia corrente quando tratamos do Estado de Israel, visto que suas raízes visavam o estabelecimento do Estado israelense e, hoje, propõe a expansão através da colonização e da ocupação de território palestino reconhecido pelas Nações Unidas.
ii: A região da Palestina foi parte do Império Otomano até sua queda, em 1922, e depois passou a ser possessão do Império Britânico, que instalou um Mandato na região e a administrou até a declaração de independência de Israel em 1948.
iii: Muito de sua superioridade militar se dá em decorrência do apoio do Ocidente, em especial dos Estados Unidos, que além de financiar já treinou a força israelense.
iv: “De jure” é uma expressão em latim para designar aquilo que é observado pelo direito, aqui sendo especificamente pelo direito internacional. Em contraponto, “de facto” se refere àquilo que é objetivamente praticado, ainda que não seja legítimo ou observado por lei.
*Heba Ayyad é Jornalista Palestina/Brasilira, escritora e poeta