Fonte Le Monde Diplomatique
Enfrentar a fome hoje é um pressuposto ético e exige a adoção de medidas urgentes, acompanhadas de medidas de efeitos de médio e longo prazo
N ão há nada de novo sob o sol. Voltamos, lamentavelmente, a discutir a fome e a miséria no país, temas que, com uma esperança receosa, foram deixados de lado nas discussões dos tomadores de decisão com a retirada do Brasil do Mapa da Fome, da ONU, e a consolidação de políticas de geração de renda para as pessoas mais vulneráveis. Dormimos no século XX e acordamos no Brasil do século XIX.
É importante lembrar para que não se repita. Em 1932 foram criados sete campos de concentração no Ceará. Não foram os primeiros no Brasil. No mesmo Ceará tinha sido criado outro em 1915. Todos espalhados estrategicamente para evitar a chegada de flagelados que fugiam da seca em direção à capital e outras cidades, onde viviam abastadas famílias da burguesia local. Estima-se em 76 mil pessoas, entre crianças, mulheres e homens adultos, que sob vigilância militar, ficaram submetidos a condições de grande precariedade, vindo muitos a falecerem vítimas da fome e das péssimas condições sanitárias.
Outras situações não menos trágicas, relacionadas à fome, ocorreram até quase o final do século passado, prevalecendo a ideia de que se tratava de uma fatalidade a que o país estava irremediavelmente condenado. Mas a fome, no Brasil, não existia apenas em episódios extraordinários. Existia uma fome mais silenciosa, que se queria esconder, então predominantemente rural, sobretudo nos estados do Norte e Nordeste.
A fome ocorre no Brasil, em realidades diversas, determinada pelas profundas desigualdades que aqui persistem. Retrata desigualdades que marcam o país desde sua colonização e que tiveram no regime de escravidão seu elemento gerador. São as desigualdades étnico-raciais, de gênero e territoriais, que se expressam a partir de situações de concentração extrema da renda, do patrimônio e, em particular do acesso à terra e à água, do acesso aos serviços e, não menos importante, do acesso ao poder político.
A fome que, na primeira metade do século passado, atingia a população que vivia no campo, vítima de processos de expulsão de suas terras e da exploração extrema de sua força de trabalho, com a urbanização se espalhou por todo o país, chegando às cidades de maior desenvolvimento junto com os milhões de pessoas que vieram das zonas rurais, na ausência de um processo de reforma agrária, como deveria ter ocorrido.
No Brasil atual ela guarda estreita relação com a extrema pobreza monetária. O país tem sua economia altamente monetizada e a insuficiência no consumo dos alimentos se dá principalmente pela falta de poder aquisitivo da população mais pobre. O Brasil, aquele que ainda tem coração, acordou horrorizado quando as capas dos jornais voltaram a escancarar a face cruel da fome: seres humanos catando carcaça e comida no lixo para se alimentar. Cenas essas que nunca foram totalmente erradicadas, mas sumiram no noticiário nacional.
Após o golpe ocorrido em 2016, com o afastamento da presidente eleita Dilma Rousseff, intensificou-se um conjunto de medidas de um projeto ultraliberal, com o objetivo simultâneo de maior fortalecimento do agronegócio e da mineração. O retrocesso que ocorreu no enfrentamento da fome aconteceu nesse contexto e foi comprovado através de pesquisa do IBGE, realizada entre 2017/2018, que mostra uma reversão da tendência de baixa, em que a insegurança alimentar voltou a crescer em todas as suas modalidades.
Cresce a pobreza e, mais ainda, a extrema pobreza como consequência de uma política de enfrentamento da crise econômica calcada na chamada “austeridade”, que cobrou preço alto para os mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que os mais ricos tiveram suas riquezas ainda mais aumentadas. O desemprego e as variantes do subemprego e do desalento ampliaram-se celeremente junto com a perda da renda de milhões de famílias.
Iniciou-se, também, um obsessivo desmonte de políticas públicas, incluídas as de segurança alimentar. A destruição, perpetrada desde a concretização do golpe e que se acentuou ainda mais no atual governo, teve na aprovação da Emenda Constitucional do chamado Teto dos Gastos, em dezembro de 2016, o principal meio de sufocamento orçamentário das políticas que não interessavam ao projeto golpista. Esvaziaram-se programas como o de Cisternas, de Aquisição de Alimentos (substituído pelo Alimenta Brasil) e tantos outros que já haviam comprovado seu potencial de enfrentamento da pobreza e da insegurança alimentar.
De não menor impacto é o que ocorre no campo, onde o agronegócio a cada ano celebra o crescimento de seus lucros, enquanto a agricultura camponesa e familiar luta contra o seu alijamento das políticas públicas. Produz-se um rastro de destruição ambiental e violência. As últimas pesquisas mostraram resultados de fome e insegurança alimentar predominando no campo brasileiro, que atingem ainda níveis mais graves sobre os povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais. Nesses casos sobressaem as frequentes e violentas negações de direito a suas terras e territórios, tornando-as vítimas principais do agronegócio e das empresas de mineração. Desmatamento, queimadas e outras violações deixam as marcas da extrema pobreza e fome em seus territórios.
O domínio das grandes corporações da cadeia industrial de alimentos gera lucros e não direitos. Enquanto estimula-se o agronegócio, grande responsável pelo desmatamento, pelas emissões nacionais de gases de efeito estufa decorrentes da mudança do uso do solo e de incontáveis violações de direitos humanos, a agricultura familiar e camponesa é asfixiada pela falta de estímulo e subsídios. Esta é a expressão da crescente injustiça social e alimentar se considerarmos que 70% da população no mundo obtêm seus alimentos principalmente das cadeias alimentares locais da agricultura familiar e camponesa e que apenas o equivalente a 30% da população mundial é alimentada principalmente pela cadeia alimentar industrial.
A agroecologia tem uma perspectiva emancipatória. E cada vez mais se situa no campo do debate e das práticas com o objetivo da transformação dos sistemas alimentares em conexão com a natureza. Combinada com a perspectiva da soberania alimentar apresenta-se como alternativa hoje e para o futuro. Na sua dimensão social, defende as relações de igualdade, reconhecendo que as mulheres historicamente são as guardiãs da biodiversidade e dos bens comuns. Posiciona-se contra o racismo e reconhece que uma sociedade pluriétnica com diferentes formas de apropriação e uso da terra e dos bens da natureza é um componente fundamental da democracia e do enfrentamento dos grandes desafios na relação entre sociedade e natureza.
Enfrentar a fome hoje é um pressuposto ético e exige a adoção de medidas urgentes, acompanhadas de medidas de efeitos de médio e longo prazo. Por isso reafirmamos o papel chave dos sistemas alimentares territorializados construídos por quem produz alimentos diversificados, que protege a biodiversidade, a saúde e a natureza. Que estejam no centro os princípios do Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas, da soberania alimentar, da agroecologia e os valores de justiça social e alimentar e da democracia.
*Francisco Menezes é ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), assessor de políticas de ActionAid e atual membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
*Maria Emília Pacheco é assessora do Programa Direito à Segurança Alimentar, Agroecologia e Economia Solidária da Fase, representante do Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar Nutricional (FBSSAN) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).