Por Eva Karene Bartlett
Embora o Ocidente tenha travado dez anos de guerra contra a Síria e haja muita destruição, o país inteiro não está em ruínas e o pulsar da vida continua, apesar do país estar estrangulado por severas sanções.
Após a libertação de Ghouta Oriental, em 2018, a mídia ocidental permaneceu, como é óbvio, em silêncio sobre o retorno dos sírios que haviam sido deslocados internamente e a reconstrução que ocorreu. Hoje, em cidades na região adjacente à Damasco, atrás de venezianas de metal empoeiradas e danificadas, vi janelas novas e brilhantes e há mais reconstruções do que quando estive aqui, em 2018.
Em Douma, vi crianças adoráveis e sorridentes, encantadas por praticar inglês. Como nasceram durante a guerra e viveram sob os reinados terrivelmente selvagens dos grupos rebeldes – Jaysh al-Islam e Faylaq al-Rahman – e seus coterroristas, sua efusividade foi notável. Os traumas que suportaram foram enterrados profundamente ou curados milagrosamente.
Uma vez que a mídia e os líderes ocidentais fizeram um grande alvoroço em torno da fraude química em Douma, foi especialmente gratificante ver a vida nas ruas novamente.
Os sírios em Ghouta Oriental enfrentaram um inferno que a maioria de nós, vivendo em segurança longe da guerra, nem consegue imaginar. Eu tinha visto seus rostos torturados, logo após sua libertação em 2018. Foi incrivelmente comovente vê-los sorrir, dançar e comemorar as eleições presidenciais hoje [denunciado antecipadamente como fraudulento pelo Ocidente, o que impede os refugiados sírios de votar para melhor deslegitimá-los]. A diferença entre ontem e hoje era como a noite do dia.
Alguns ficaram surpresos quando postei nas redes sociais vídeos de artista e orquestra síria se apresentando na Casa de Ópera de Damasco, há duas noites atrás. Muitos acreditam que o país foi completamente destruído, outros simplesmente ignoram que ele tem cultura rica e que não morreu, apesar desta guerra de dez anos travada pelo Ocidente.
Até a Libertação, no entanto, os sírios em Damasco corriam o risco de ser mutilados ou mortos toda vez que iam para o trabalho, para escola, mercado ou mesmo quando ficavam em casa, enquando morteiros e mísseis terroristas os atingiam na Ghouta Oriental.
Em 2014, deixando para trás a hospitalidade do pequeno hotel em que estava hospedada perto do Portão de Bab Sharqi, o portão leste da Cidade Velha de Damasco, fui até um grupo de mesas em frente ao magnífico restaurante grego da Catedral Ortodoxa, em Zaitoun, e ao lado de um restaurante fechado. Mas em vez de trabalhar no meu laptop, como havia planejado, acabei conversando com o dono desse restaurante, agora chamado bar Abu Zolouf.
Enquanto Abu Shadi e eu conversávamos, morteiros disparados por terroristas caíram em bairros próximos. Escrevi na época:
“Na verdade, gravei o som de dois dos quatro morteiros. O primeiro ocorreu por volta das 19h05, a uma distância estimada em 200 metros de Abu Shadi. O amigo corrigiu dizendo que ficava a apenas 50 metros (cerca de 20 metros do meu hotel). Cerca de 10 minutos depois, um segundo projétil de morteiro pousou. Houve mais dois ataques de morteiros em meia hora. O jornal SANA noticiou o ferimento de 17 civis. “
Nossa conversa se concentrou no bombardeio implacável, onde o último morteiro caiu, e uma experiência em que um projétil quase o matou.
“Duas vezes morteiros caíram na frente do meu restaurante. Um teria me matado, mas eu entrei um pouco antes ”, disse ele, apontando para um ponto no chão, ao lado da porta. Ele lamentou a perda de atividade tanto quanto a ameaça representada pelos morteiros.
Outra noite, visitei o restaurante com um amigo. Vendo Abu Shadi, sentamos com ele e conversamos sobre aqueles dias sombrios de 2014. Agora sua pousada está aberta e bem frequentada, com os hóspedes sentados sob oliveiras claras aproveitando as noites de início de verão.
Ainda em 2014, uma tarde, querendo fugir do sol escaldante, encostei-me no muro que cercava a cidade velha, olhando para Jobar, então ocupado por facções terroristas, a cerca de um quilômetro de distância. Como escrevi naquela época, enquanto conversava com um amigo:
“As balas assobiavam à minha frente, meio metro à minha direita ou à minha esquerda. Todos ao redor pularam e correram, a maioria parecendo em pânico. Corremos cerca de 50 metros, até um ponto aparentemente fora do alcance dos terroristas. Uma mulher, que sofria de hiperventilação (necessita de máquina para elevar acima do normal a taxa de respiração) e não conseguia ficar de pé, levou uns bons 10 minutos para se acalmar, fazendo repetidamente o sinal da cruz enquanto soprava. Mais tarde, conversei com um homem que vendia panquecas de espinafre, mencionando que fiquei surpreso que as bolas tivessem chegado ao ponto onde eu estava sentado. “Eles estão vindo de tão longe”, disse ele de sua padaria com buracos na parede, “a 200 metros de onde eu estava sentado antes”.
Meus encontros com morteiros e suas vítimas foram numerosos ao longo dos anos e, em particular, vi muitas crianças mutiladas e gravemente feridas pelos bombardeios terroristas e muitas antigas casas de Damasco parcialmente destruídas por esses ataques.
Em 2018, entrevistei o talentoso violinista e compositor Raad Khalaf, que também é dos fundadores da Orquestra Mari. Ele mencionou que os atentados terroristas atingiram o Instituto Superior de Artes Dramáticas onde ele ensinava, perto da Ópera.
Ele me disse que no ano anterior, terroristas atacaram a área com cerca de 37 bombas em um dia.
“Os alunos tiveram que ficar oito horas dentro de casa; não podíamos sair porque não sabíamos quando ou onde a próxima bomba cairia. Um estudante saiu e foi morto. Vivemos aqui cinco anos difíceis. “
Na segunda-feira desta semana, fui à Ópera para ouvir a cantora síria Carmen Tockmaji com a orquestra que a acompanhava. O auditório estava apenas meio cheio, mas animado, com todos obviamente apreciando o talento da cantora.
Fiquei surpreso mais tarde ao saber que um assento, na primeira fila, custa apenas 2.000 libras sírias (80 centavos de dólar dos EUA), uma passagem de segunda classe 1.500 (60 centavos de dólar dos EUA) e uma passagem de terceira classe 1.000 (40 centavos de dólar dos EUA). No entanto, apesar do preço baixo, os mais pobres da Síria não podem pagar, em grande parte por causa das sanções brutais impostas ao país que afetaram de forma decisiva a moeda, causando hiperinflação, consequência intencional das sanções cruéis e imorais infligidas ao povo sírio.
Escrevi no ano passado (e antes) sobre como essas sanções afetam diretamente os civis:
“Em 17 de junho, os EUA implementaram a Lei de César, a última rodada de sanções draconianas dos EUA contra o povo sírio, supostamente com o objetivo de ‘protegê-los’. Isso depois de anos bombardeando civis e apoiando ativistas antigovernamentais, o que levou à proliferação de terroristas que sequestram, encarceram, torturam, mutilam e assassinam os mesmos civis. As sanções afetaram a capacidade da Síria de importar medicamentos ou matérias-primas necessárias para fabricá-los, equipamentos médicos, bem como máquinas e equipamentos necessários para fazer próteses, entre outros”.
Mas as sanções têm outro efeito brutal: elas causam estragos na economia. Um artigo de opinião, publicado em 3 de maio de 2021 por Abbey Makoe, no site da South African Broadcasting Corporation observou:
“O racionamento de eletricidade na Síria atingiu seus níveis mais altos devido à incapacidade do governo de obter o combustível necessário para gerar eletricidade. Isso se deve principalmente às danosas sanções econômicas internacionais levadas a cabo pelas potências ocidentais, incluindo os protagonistas da IIT (Equipe de identificação para Organização para a Proibição de Armas Químicas): França, Reino Unido e Estados Unidos. O valor da libra síria caiu para quase nada. A Lei de Proteção Civil César Síria de 2019 é responsável por causar fome, obscuridade, pestilência, miséria, roubo, sequestros, aumento das taxas de mortalidade e certa destruição de uma nação que já foi um raio de esperança em todo o Oriente Médio. “
A miséria é real e os sírios estão realmente sofrendo, muitos não conseguem nem mesmo alimentar suas famílias adequadamente.
Falar sobre as apresentações na Ópera pode parecer deslocado em vista do sofrimento econômico, mas o fato de tais produções ainda ocorrerem na Síria é outra indicação de que o plano ocidental de derrubar o regime falhou, apesar de seus 10 anos de operação. Há guerra contra a Síria.
Assistir a esse show pouco antes das eleições presidenciais foi comovente. Como Carlos Tebecherani Haddad, um amigo sírio-brasileiro que conheci em 2014 enquanto os morteiros choviam ao nosso redor, escreveu: “É uma celebração da vida, da vitória sobre a agressão estrangeira, da reconstrução, da força das raízes sírias, das eleições presidenciais e do brilhante futuro da nação”.
Na verdade, foi isso que vi na Síria, inclusive hoje em Douma, onde os sírios se reuniram para votar. Ainda assim, há muito a ser feito, especialmente quando se trata de reconstruir a infraestrutura, e porque os “benevolentes Estados Unidos e seus aliados”, ao sancionar o povo sírio, impedem isso diretamente.
Portanto, se você ainda aponta o dedo para o presidente Bashar al-Assad e o exército árabe sírio, volte esse dedo para seus governos, vocês do Ocidente. Eles são a causa de destruição e morte na Síria e impedem um retorno à paz e à normalidade.