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Sputnik – Apesar de os EUA anunciarem o fim de sua missão de combate no Iraque, 2.500 soldados norte-americanos ainda estão em Bagdá. A Sputnik Brasil entrevistou especialista para saber se tal fato ainda pode representar protagonismo estadunidense no país.
Em março de 2003, os EUA iniciaram a Guerra do Iraque em uma coalizão com o Reino Unido e outros países. O principal objetivo foi anunciado: tomar e aniquilar as armas de destruição em massa do governo de Saddam Hussein.
Os números da guerra são trágicos. De
acordo com a BBC, o contingente de soldados norte-americanos no país variou entre 100 mil e 150 mil, desses, 4.421 mil morreram e 32 mil ficaram feridos. No entanto, entre os civis esse número é bem mais alto. Estima-se
que 106.348 mil iraquianos morreram durante o período do conflito entre 2003 e 2011.
A Guerra do Iraque fez parte da “Guerra ao Terror” promovida pelo governo norte-americano no Oriente Médio, a qual abarcou outros países como o Afeganistão e o Paquistão.
Ao todo, o relatório do Instituto Watson de Assuntos Internacionais e Públicos, da Universidade Brown (EUA), calculou o número de mortes entre 480 mil e 507 mil, mas assegurou que o número é provavelmente maior,
segundo O Globo.
No dia 9 de dezembro, Washington
anunciou o fim de sua missão de combate no Iraque, entretanto, 2.500 soldados estadunidenses ainda continuam no país.
A Sputnik Brasil entrevistou Fernando Brancoli, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em questões do Oriente Médio, para saber como se encontra o país com o fim da missão norte-americana e se o contingente restante de soldados ainda pode apontar para um protagonismo dos EUA no país e região.
Brancoli
afirma que as tropas vão proteger diariamente áreas nas quais os EUA ainda têm parcerias com o atual governo iraquiano, “como embaixadas, algumas locais de produção e exportação de petróleo e algumas empresas parceiras”.
“São resquícios da ocupação norte-americana, portanto [essas tropas], vão lidar com setores muito localizados. Se formos analisar em larga escala será irrisório, não vai ter grande impacto para política na região ou mesmo para segurança do Iraque no geral”, elucida o professor.
Esses “resquícios” são o motivo para permanência dos EUA na região e, segundo Brancoli, a princípio, não há “um programa para retirar esses 2.500 soldados“.
O professor ressalta que além dos soldados contratados pelo Estado, Washington “também promove o emprego de empresas privadas de segurança que fazem a proteção de alguns espaços, assim sendo, esse número pode crescer no que diz respeito a uma atuação completa”.
“Mesmo com esse contingente, vimos uma saída, uma retirada, bastante importante. Então, esse grupo é muito mais um rescaldo. Hoje, os EUA não têm uma atuação relevante no que diz respeito às Forças Armadas no país.”
Movimentos radicais pós-retirada dos EUA
Se a ausência da presença norte-americana pode fazer
movimentos radicais ganharem destaque na região, Brancoli acredita que a possibilidade é remota, uma vez que esses grupos, hoje em dia, dispõem de outra percepção sobre como tomar o poder.
“Esses movimentos perceberam que não precisam usar força para tomar o poder, eles podem fazer isso influenciando a população, investindo em áreas estratégicas, para ganhar apoio e prestígio, e assim, ir ocupando o governo. […] Eles perceberam que tentar tomar o Estado de assalto chama atenção internacional, gera mortes, refugiados, portanto, eles agora ‘comem pelas beiradas'”, diz o professor.
Desse modo, uma guerra civil estaria distante do contexto iraquiano, acontecendo uma “consolidação” desses grupos através de procedimentos não tão violentos.
Afeganistão e Iraque
Os EUA ocuparam ambos os países por um bom tempo, e também anunciaram o fim das operações neste mesmo ano. Em Bagdá, no dia 9 de dezembro,
e em Cabul no dia 11 de setembro.
Indagado se existe a possibilidade de o cenário regional criado pós-retirada dos EUA no Afeganistão se repetir no Iraque, Brancoli diz que os contextos são diferentes.
“O governo iraquiano, apesar de disfuncional, de ter problemas seríssimos com corrupção, é um governo mais robusto do que o do Afeganistão, mais estruturado desde a época de Saddam Hussein.”
Consequentemente, não se veria uma “erosão estatal ou um completo caos dentro do país”, entretanto, o especialista ressalta que a administração enfrenta profundos problemas com assuntos que o Estado tem que prover.
“Gerenciar os bens públicos, assim como o aumento expressivo da já presente corrupção no país, a incapacidade de prover segurança e até alimentação para população, a campanha de vacinação contra a COVID-19 que praticamente não começou no país são assuntos críticos”, cita Brancoli.
O professor complementa que não enxerga uma erosão completa como de certa forma aconteceu no Afeganistão, mas sim “um Estado disfuncional que ainda mantém estruturas burocráticas”.
Estado satélite iraniano?
O Iraque é parceiro e
aliado muito importante para o Irã. Segundo Brancoli, é preciso pensar que há cada vez mais uma retomada de grupos ligados ao país persa chegando ao poder dentro do Estado iraquiano.
“O Iraque, hoje, atua do ponto de vista de sua política externa e interna de maneira muito próxima à de Teerã. Com a queda de Saddam Hussein pela invasão norte-americana, é como se o governo Bush, na época, tivesse dado ‘de presente’ o Iraque para o seu inimigo Irã, um dos maiores rivais dos EUA.”
No entanto, Bagdá tem sim soberania, e a designação de “Estado satélite do Irã” seria “muito forte”, de acordo com o professor.
“A República do Iraque tem sua autonomia, mas há uma série de convergências religiosas, econômicas, políticas e de segurança com a República Islâmica. […] E com uma mudança de foco dos EUA do Oriente Médio para China, o Irã vai aproveitar esse espaço e obviamente isso mudará todo o tabuleiro da região.”
Curdos
Com a saída estadunidense do país, há de se pensar em
como ficarão os curdos com esse movimento, uma vez que os EUA representam a maior força de apoio à minoria étnica.
No entanto, Brancoli relembra que há alguns anos os curdos tentaram promover um referendo para ganhar maior autonomia em uma expectativa de que Washington os apoiaria, e isso não se concretizou.
“Os curdos já se sentem um pouco abandonados nos últimos anos em relação aos norte-americanos, mas ainda são um grupo muito próximo dos EUA. Vale recordar que parte importante da exploração de petróleo do Iraque está em território curdo que é uma área relativamente pacificada, mas nos últimos dois anos, eles perceberam que não podem contar apenas com um aliado internacional.”
Ao identificarem a questão, eles estão “abrindo mais seu processo de negociação, dialogando mais com o Irã, com os russos e até com os chineses“.
“Então eu diria que uma saída norte-americana mais potente é complicado para os curdos, mas não é o que já foi há três, quatro anos, onde os EUA eram a única forma de proteção.”
Triângulo Sunita
Se há
a possibilidade de um retorno do Daesh ou da Al-Qaeda (grupos terroristas proibidos na Rússia e em diversos países) ou o surgimento de nova organização terrorista na região, Brancoli diz que sempre fica em aberto essa chance, já que há uma fraqueza institucional que pode abrir espaço para o movimento.
“Há um cenário propício para criação de grupos fundamentalistas, mas a grande pergunta que fica é se esses grupos que já atuam de certa forma, remanescentes do Daesh, da Al-Qaeda, vão ter capacidade de operar de forma tão ampla quanto o Estado Islâmico [organização terrorista proibida na Rússia e em diversos países] operava anteriormente. Possivelmente, esses grupos poderão fazer ataques mais regionais, mas não globais como o Estado Islâmico fazia, influenciando ataques terroristas na Europa, na África e nos EUA.”
Brancoli complementa que apesar de parecer que o Oriente Médio é muito distante do Brasil, é importante lembrar que “o que acontece lá, impacta o mundo todo. Vai mudar o preço do petróleo, preço do alimento, portanto, temos que ficar de olho na política iraquiana e de toda região porque isso vai impactar nossas vidas no final das contas”.